segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Bem que eu estranhei

Ele nunca foi de deixar tudo arrumado. Bem que eu estranhei. Quando eu vi o chinelo encostadinho ao pé da cama, o pijama dobrado, a xícara lavada do café no escorredor e o fósforo e a carteira de cigarro sobre a cômoda, então, não tive dúvida: Ele iria embora.
No almoço, poucas palavras. Poucos olhares, na verdade. A TV na sala emitia um ruído baixo que quase incomodava. Ele iria embora. E eu sabia. Levantou, lavou a louça, deu-me um beijo na testa e saiu sem mais. Eu sabia.
Eu devia ter me preparado. Devia ter tentado ao menos me ver sem ele, acostumar-me com seu recente e irremediável afastamento. Mas não. Eu assisti a tudo com meu velho ar estóico, da mesma maneira que contemplei por horas a cadeira vazia na mesa ainda posta pela última refeição do nosso casamento.
Não pensei em pedir-lhe pra ficar, nem mesmo o culpei por querer ir. Embora eu não entendesse o porquê da sua iminente partida, eu sabia que havia um motivo. Um motivo que eu nunca conheceria, mas cuja existência haveria que me bastar.
De volta do trabalho, sentou-se em frente à televisão como de hábito, e como de hábito pouco falou. Fiquei observando seu jeito taciturno, e subitamente seu comportamento banal me fez duvidar que ele me deixaria. Ele me amava, eu bem sabia. Duvidei por todas as horas da minha insônia após sua retirada para o quarto. Mas ao fechar o olho, a certeza ainda estava lá. Ele iria embora.
E não foi diferente quando eu acordei e sua ausência era maior que ele mesmo. Embora certa disso desde o príncipio, não pude evitar a surpresa: Ninguém pela casa, sem louça na pia, o pijama dobrado, o chinelo encostadinho ao pé da cama. Tudo arrumado pra sua partida. Ele nunca foi de deixar tudo arrumado. Eu estava certa, ele havia ido pra sempre. Sem deixar qualquer explicação ou esperança pra apego nas noites mais frias. Eu estava acostumada a tê-lo ausente porque sabia-o aqui, por perto, em silêncio. Mas agora ele tinha ido mesmo, ele não estava simplesmente calado no almoço, em frente à TV. Ele tinha ido. E eu sabia.
E agora já tem tempo, e a ausência dele ainda mora comigo. A xícara e o prato do almoço continuam no escorredor, intocados. Estão lá porque, se ele queria arrumar tudo pra partir, devia tê-los guardado. Devia ter lavado o pijama. Devia ter apagado todo e qualquer rastro da sua existência, pra não me deixar dúvidas de que ele foi embora. Porque eu ainda duvido.
Duvido quando procuro seu jeito taciturno pela casa. Duvido quando choro baixinho antes de dormir. Enquanto todos na rua seguem sua vida como se ele nunca tivesse existido, eu continuo duvidando. Ele está por aí, e a louça ficará secando eternamente no escorredor, até ele voltar. O chinelo ainda está no pé da cama, do jeito que ele arrumou. E se ele arrumou, é porque quer encontrar tudo no lugar quando voltar, eu sei. Porque ele nunca foi de deixar tudo arrumado. Bem que eu estranhei.

8 comentários:

Diva Nassar disse...

Como sempre, cada palavra entrou na minha cabeça do mesmo jeito que saiu da tua. =)
Amo.
=**

Funfas disse...

Esse texto tem mais significado pra quel lê, sabendo de todas as coisas que se passaram com todos ultimamente, do que como se nada tivesse acontecido.

O texto é lindo. Mas acho que não foi beleza que você quis passar nele, né? Não é essa a palavra. De qualquer forma ficou ótimo.

Bom saber que você atualizou o blog. Vê se não deixa um ano sem novidade de novo. Bjão

Unknown disse...

Perfeito..
simplesmente perfeito!!

coxinha de morphina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
coxinha de morphina disse...

queridíssima, bom te ver atualizando isso aqui.

meus feeds já não aguentavam mais esperar.

sem sacanagem, tive um deja vu ao ler o texto, me remeteu a algum lugar na minha insignificante existência. acho que em alguma vida passada fui esse cara que se escafedeu, embora eu não acredite muito nessas coisas.

saudade dos papos cabeça.

=*

Funfas disse...

esse texto me arrepia toda vez que leio... kct...

e atualiza essa joça!

Unknown disse...

Texto perfeito.

Dj disse...

A solidão que esse texto transmite atravessa a minha alma. Perfeito !