quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Lúcia - Continuação

Pra quem cobrou, eis aí =D
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Lúcia era uma criatura a quem se poderia tentar decifrar por horas a fio, e em vão. Singular, construía os mais loucos descaminhos para explicar o inexplicável, a seu modo e a seu juízo. Ela sabia, de alguma forma, que tinha poderes não declarados em suas mãos - entre eles, o de controlar minha disposição. E tinha muita vida em si que transbordava, e tinha tanta vontade de conhecer o novo. Pediu-me para mostrar o dia, o novo, a água, a areia, os santos. Pediu-me para mostrar-lhe as mãos.

- O que pode haver nas mãos de um santeiro, além de areia?
- Nas mãos cabem histórias que as palavras não contam, santeiro. Você devia saber disso.
- E viu alguma história nelas?
- Ainda não. Mas um dia alguma há de ser lida através delas.

Eu devia saber que Lúcia era muito mais que uma visitante. Devia ter ao menos imaginado que ela marcaria minha história, sem nunca marcar minhas mãos. Marcar todas as palavras que escrevo angustiado.

O dia seguiu da maneira que seguiria como se fosse qualquer dia outro, e ninguém poderia esperar que fosse diferente. Trabalhar, não mais naquele dia. Fui levar Lúcia para conhecer o povoado, ver os rostos que foram moldados a sol e trabalho. E as horas foram tomando seu desenho, o fim do dia colorindo de giz a praia, e eu estava habituado a tudo aquilo. Lúcia, porém, estava radiante.

- Tenho a sensação de que os dias nunca haviam nascido para mim antes de hoje. Deve ser grandiosa a sensação de, além de ser Deus pelo avesso, ter um dia novo que só nasce pra si.
- Não é tão brilhante ter dias novos que só são novos no nome. Você aqui é a minha idéia de Dia Novo. Parece que você é de mentira.
- Mas o que é a mentira, além de uma verdade que aguarda a chance de acontecer? Você um dia vai enxergar a beleza dessa areia, desse mar, dessa sua falta de dias novos. Só não entendo do que adianta moldar milagreiros do reino divino se o Paraíso está à sua frente; e é um direito, não um milagre - disse, enquanto fingia flutuar de braços abertos.

E a noite abriu suas asas, e agora era um breu que parecia sólido. E Lúcia já dormia a sono solto, ali mesmo nas minhas pernas, na porta da minha casa, e eu sentado tentando entender a velocidade dos meus pensamentos. Quem era, meu Deus, de quem era aquele semblante repousando no meu colo, o que foi que a trouxe, e por que nada daquilo fazia sentido se não havia nada pra ser entendido? E eu pensava nos meus dias de antes que não mais tinham importância, pensava nos santos, em Deus, nos meus pais, em mim mesmo e em todas as coisas que eu nunca procurei entender; e tudo isso por esta menina louca, de rosto austero e postura pedante, cheia de si e dos argumentos profusos. E a noite foi clareando e virando dia, ignorando a expectativa de que ela seria imortal. Não dormi nem por um instante, Lúcia em meu colo e sobrevoando minha cabeça - porém sem fazer ninho.
- Pensar é bom em tese, mas seu rosto desmentiria isso rapidamente - disse Lúcia, protegendo os olhos do sol.
- Senta, Lúcia - resmunguei, com sono e irritado com o estado de confusão em que ela me deixava - senta e me olha, que é horrível esse medo de olhar os outros nos olhos.
- E te olhar para quê, se é quando eu te olho que vejo que não te conheço? Se aí é que enxergo a aspereza do teu rosto como sempre vi em todos os rostos que se sentem contrariados pelo que é novo? Me cansa os olhos ver que aqui tudo respira profundo; menos você, que não respira nem morre para ficar aguardando o tempo inteiro algo novo acontecer. Eu estou aqui, e eu sei que você consegue ver. Eu estou aqui, e enquanto me renovo a cada segundo, você teme. Quem é você para me falar de medo?

Seu lindo rosto contorceu-se até formar algo disforme, que eu não consegui traduzir. Lúcia levantou-se, impaciente. "Vou embora", foi o que ela disse. Então, calado, também levantei e a peguei pela mão. E calados fomos, caminhando sem explicações ou teorias, sem lições de vida ou promessas de paraíso. À beira do mar, uma montanha - a grande pedra da praia. "Quero ir lá em cima". Subimos e, sem fôlego ao chegar no topo, sentamos. Enquanto observávamos a dança do mar lá embaixo, longe, Lúcia sorriu pela primeira vez naquele dia. Encantado e arrependido, desculpei-me por ter sido rude antes, e tentei fazê-la entender que era justamente por não conseguir entendê-la que nada mais era passível de entendimento. E então, ela sorriu e disse, sem que eu soubesse que era uma despedida:

- A única coisa que você precisa entender é que nada precisa ser entendido ou explicado. Você só conseguirá entender a profundidade das coisas bonitas quando absorver delas a sutileza. E talvez isso seja o que eu tanto procure. A sutileza das coisas belas, a ausência de justificativas para viver a não ser a própria vida. Daí as coisas passam a fazer sentido, e já o fazem para mim. Este lugar já deixou suas histórias nas minhas mãos.

E da pedra ela pulou, e foi dar no mar. E para o mar fiquei olhando por horas que pareceram meses. Ela não mais voltou à superfície. E era como se eu soubesse que ela não voltaria desde o início. Não me causou espanto nem estranheza. Era como se ela tivesse ali partido para escrever novas histórias em novas terras, viver outras aventuras destilando seu modo livre de transbordar vida.
E da pedra eu desci, sofrido. Na porta de casa, aquele rosto em areia me sorria, com seu ar pagão e encorajador. E então, as coisas subitamente se encaixaram: as sutilezas, os mistérios, os meus amargos dez mil dias que eu passei esperando a luz de Lúcia. Não tive dúvidas quando decidi juntar minhas parcas coisas e partir para outro lugar que me oferecesse a amplitude que agora havia em mim.Hoje, tantos muitos outros dez mil dias depois, ainda não consigo explicar o que aconteceu em Dia Novo quando Lúcia apareceu. Já fiz muito depois de tudo aquilo: trabalhei, fiz dinheiro, casei e moldei novos rostos feitos de amor, carne e osso. Virei artista, escritor, intelectual. Porém, ao olhar para minhas mãos, ainda vejo restos de areia, e é como se olhasse para dentro de mim - onde sempre haverá um pouco de areia, um pouco de santo, um pouco de vento e um pouco de mar. Onde sempre haverá um pouco de Lúcia.