segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Lúcia

E da pedra ela pulou, e foi dar no mar. E para o mar fiquei olhando por horas que pareceram meses. Ela não mais voltou à superfície.
...

Era um dia como qualquer outro dos dez mil dias que eu vivi iguais. O mar, a areia e o vento, este segredando aos dois suas aventuras de artífice. Artífice como ele era eu – não da mesma magnitude, certamente, mas areia e água eu moldava e dava vida à fé do vilarejo. Ofício e glória herdados de meu pai, dedicava meus dias a erguer santos de barro, e deles tirava meu sustento. Todos os dias.
Naquele dia, o sol já estava alto quando eu levantei, embora acordado estivesse desde antes dele nascer. Demorei-me pensando em pequenas bobagens, como a origem das palavras, o número exato de vilas pescadoras existentes e quem poderia ter nomeado as coisas e os bichos. Bobagens. Entrei no mar para amenizar o calor antes de começar a trabalhar. A verdade era que eu estava pouco disposto aquela manhã. Sem mais, pus-me a modelar mais uma, a primeira das muitas que pretendia fazer aquele dia, imagem. Era a imagem de uma mulher, mas, apesar do semblante doce e austero, não parecia uma santa. Eu sempre fiz santos. Só santos. Mas aquela mulher... Santa não era.
Embora curioso, quase intrigado com o esboço que eu criara sem saber por que e com a minha convicção a respeito do seu paganismo, prossegui com o labor. Entretive-me ali com aquele rosto que parecia se rir de mim, tanto que não percebi que uma pessoa se aproximava. Vi a sombra de algo esvoaçante e eu, agachado, virei-me para ver do que se tratava. Era um vestido branco. Olhei para cima e o sol por uns instantes me impediu de ver o rosto da mulher que o portava. O rosto ao qual há pouco eu dera forma.
- Bom dia – disse eu, por fim, embora talvez nem dia fosse mais de tanto que eu passei tentando observá-la.
- Dia novo? Aqui é a praia do Dia Novo? – diante de minha confirmação, ela suspirou e olhou para o alto – Cheguei, então. Mas que dia novo pode ter um lugaar onde todos os dias se parecem?
- Sinto dizer, mas há tempos estamos sem dias novos por aqui. talvez não haja nada de novo desde que novas eram as redes de pescar, e estas já têm tempo. Acredite, a maior novidade de hoje é você. Que ventos a trouxeram aqui?

Lúcia. Lúcia era o nome dela, soube naquele instante. Ela não me olhava, só olhava para o céu.

- Quer dizer luz. Acho que é isso que vim procurar aqui. Um pouco mais de luz. Esse vento que aqui me trouxe, como disse você, deve ter ouvido minhas lamúrias. E você, que ventos aqui o trouxeram?
- Aqui eu não cheguei por vento. Não, vim pelas mãos da única parteira que por aqui vive. Os ventos trouxeram meus pais, mas também já os levaram.
- Pena. E você os busca criando imagens em areia? Deixe-me entender – agachou-se e eu pude confirmar que ela era atordoante – você cria santos. Deus criou você e você cria seus auxiliares. À sua própria imagem e semelhança, foi assim que Deus criou todo mundo, não? Você cria santos à sua própria imagem e semelhança. Você é Deus ao contrário?
Acho que eu não entendi nada do que ela falou nos minutos que se seguiram. Mas já era suficiente para prever que Dia Novo viveria um dia completamente diferente dos dez mil dias que o antecederam.


Continua...
=D